Digitando: Manifesto Extensionista

 

Abolindo o conceito velho

 

Na idade média, a instituição que hoje chamamos de Universidade era originalmente definida como uma corporação de magistrados e escolásticos legitimada por autoridades civis e eclesiásticas. Assim, era um espaço restrito ao ensino e desenvolvimento de conhecimentos. A partir do século XVIII, a progressiva institucionalização do ensino básico público nos estados nacionais, aliada às transformações no modo de produção e das relações sociais, influenciaram a mudança do paradigma universitário, com cada vez menos participação do clero e consequente apropriação dessa lacuna pela sociedade civil, a burguesia e o Estado.1

Saltando no tempo, é notável que no Brasil, embora existam outras perspectivas, qualitativamente se predomina o modelo de universidade pública, a qual detém um princípio estruturante: esta é pública porque deve servir ao povo, caso contrário, seria apenas universidade. Servir ao público significa trabalhar em favor dele, cumprir com as suas exigências e oferecer os melhores frutos do conhecimento humano. Mas como trabalhar para o povo em uma instituição cuja função é, originalmente, abrigar catedráticos, docentes e alunos para garantir que o ensino-aprendizado aconteça? 

Percebe-se que ao utilizar uma definição antiga de Universidade, associada a um rigor aristocrático e a formalidade de um espaço fechado e restrito ao ensino, forçamos uma incompatibilidade lógica entre esse conceito e o termo “público”, que pressupõe características diametralmente opostas, como a abertura, a comunidade e a ausência de fronteiras entre os cidadãos. Portanto, acatar o modelo público dessa instituição necessariamente significar abandonar essa definição antiga. Exige aceitar o tripé universitário enquanto estruturante do espírito e do fazer universitário, exige a lembrança diária de que se tomamos o nosso caminho para nosso espaço de formação, só o tomamos porque a população brasileira solidariamente nos financia e porque essa formação tem uma função social que extrapola os limites das nossas individualidades.

 

As múltiplas facetas do fazer Universitário

 

Mesmo se investigarmos todas as portarias e leis que dispõem sobre as funções das universidades públicas, jamais esgotaríamos os seus objetivos e impactos reais.

Quanto ao Ensino, podemos citar que dentro do estado democrático de direito, além de descobrir, multiplicar e reproduzir conhecimentos, a Universidade tem ainda a soberania de legitimar o título de quem detém as habilidades necessárias para uma determinada profissão. Um diploma é muito mais do que um passaporte para uma carreira, é um atestado de confiança dado pela instituição e a certeza socializada de que certa função será efetiva, baseada na excelência do ensino oferecido nos cursos. Em termos simples, o Ensino é o sistema de criação das carreiras profissionais no país, sendo que estas não são um fim em si mesma, existem como um meio para o desenvolvimento social.

Quanto à Pesquisa, em nível nacional, a tecnologia gerada pela Universidade cumpre um papel estratégico no desenvolvimento das forças produtivas e defesa da soberania. Inexiste potência nacional com razoável nível de independência sem uma boa base universitária que garanta a capacidade de inovação, a provisão de insumos complexos, a segurança energética, alimentar e até mesmo militar. Especialmente no século XXI, a inovação é sinônimo de ganho econômico e poder.

Além desses dois aspectos, por estar no meio e constituir parte da sociedade, é impossível conceber a Universidade como um espaço apolítico. Parafraseando o sábio ditado popular, os cidadãos com as mentes vazias são oficinas para a alienação e dominação política infernal. As instituições de ensino como um todo, mas especialmente as superiores, são, essencialmente, espaços preenchedores dessas mentes. É natural, portanto, que sofra ataques retóricos e orçamentários de grupos que se beneficiam do estado vazio das mentes. Sendo um espaço de conhecimento, é também um espaço de poder, pois mesmo com a idoneidade e neutralidade do método científico, a forma com que o conhecimento gerado é apropriado, divulgado e aplicado tanto depende como influencia na configuração social vigente. Ademais, vale citar que a reparação oferecida pelas cotas raciais e sociais aos grupos historicamente oprimidos, como a população negra e indígena, fomenta a representatividade política desses grupos e a redução das desigualdades econômicas.

Mas e quanto a Extensão, a “filha pobre do tripé universitário”, o que dizer da sua materialidade no ser universitário? Ao contrário dos dois outros filhos mais agraciados (mas nem tão ricos assim, o Ensino e a Pesquisa), pensar sobre a Extensão exige muito mais cuidado.2

 

A Universidade tem mesmo três pernas?

 

Em primeiro lugar devemos ter em mente como a nossa instituição define o que é Extensão: 

 

"A Extensão Universitária na Universidade Federal da Bahia é entendida como um eixo de atuação que articula as funções de ensino e pesquisa, de forma indissociável, e amplia e viabiliza a relação transformadora entre a Universidade e a sociedade, contribuindo, assim, para a formação cidadã dos sujeitos nela envolvidos. É por meio da extensão que a UFBA tem se revelado uma universidade cidadã, voltada para as questões e demandas da sociedade, produzindo conhecimentos por meio do diálogo e troca de saberes com os diversos setores sociais." 3

 

Ao analisarmos o trecho contido no Manual de Extensão Universitária da UFBA, percebemos que essa definição é incompatível com certas práticas atuais de grupos acadêmicos que assumem algumas atividades como Ex-tensão (dentro pra fora). Na verdade, a maioria são atividades de In-tensão (dentro pra dentro). A distorção talvez seja fruto da insuficiência do debate e de uma formação contínua baseada no pilar extensionista para o estudante. Não buscamos atacar aqueles que, na busca de uma certificação justa de um trabalho que não se enquadra nem como Ensino, nem como Pesquisa, submetem esse projetos às pró-reitorias de Extensão. Entretanto, ao adotar este caminho, desvalorizamos, enquanto instituição, um dos pilares que mais nos conecta com o sentido público da nossa Universidade.

 O primeiro exemplo de distorção talvez seja o mais comumente confundido: o estágio. A diferença entre um projeto de extensão e um estágio (obrigatório ou não) é o direcionamento de atuação. Ao passo que, em um estágio, o aluno experimenta diferentes cotidianos profissionais buscando prioritariamente a sua própria formação, no projeto de extensão, o foco é aplicar à sociedade as habilidades aprendidas. Impacto social é item essencial ao desenvolvimento de um projeto de extensão. No estágio, o aprendizado do aluno é prioridade e a sociedade o auxilia neste processo. De modo inverso, na extensão, a prestação de serviço à sociedade é a prioridade e o estudante efetua este processo.2

Um exemplo menos frequente, mas não menos trágico, é a Extensão que acaba se voltando para dentro. Inicialmente o projeto pode até ter uma metodologia interessante, entretanto, o público-alvo acaba sendo aquele que já ocupa a própria Academia. Simpósios, palestras, congressos técnicos, encontros universitários e outros tipos de evento são importantes ferramentas de complementação do Ensino, isso é inegável, entretanto, não podem ser confundidos com Extensão. Mesmo que sejam eventos gratuitos e abertos, a configuração voltada para um público específico é uma restrição à sociedade, descaracterizando-o.

Distorcer os tipos de projetos, colocando o Ensino como Extensão, pode parecer uma ação inofensiva e ser uma estratégia de melhoria do currículo individual dos envolvidos pelo registro e certificação de um simpósio de uma liga acadêmica, por exemplo. Entretanto, ao perder de vista o real sentido das atividades de Extensão, concebidas como um pilar estruturante da Universidade, há o seu apagamento material e a asfixia das possibilidades extensionistas, aumentando mais o tamanho e número dos muros, ao invés de transcendê-los. Esse é um caminho em direção ao conceito antigo, escolástico e restrito, anti-público, no qual a Universidade não se pinta de povo. É um movimento de retrocesso.

É necessário portanto, o abandono da mediocridade dessas propostas, ou, caso haja a insistência no seu desenvolvimento, que sejam taxadas e classificadas adequadamente como qualquer coisa que não seja chamada de Extensão. Esse debate é vantajoso tanto para os graduandos que desenvolvem essas atividades de Ensino, como para a Extensão que será julgada oficialmente pelo que realmente deveria ser.

 

Um pequeno exemplo

 

De maneira geral a extensão ideal começa com a identificação de uma demanda social seja por meio de dados epidemiológicos e indicadores sociais ou por demanda popular de determinados grupos. O processo de construção deve sempre ser pautado por uma boa e constante comunicação com o locus para que a atividade planejada seja a mais adequada para os recursos materiais e metodológicos disponíveis e para que tenha a linguagem certa para o público-alvo. Além disso, por vezes, faz parte do processo de construção se aprofundar e se capacitar de forma satisfatória para realizar a atividade proposta. Por fim, a extensão gera dados qualitativos e/ou quantitativos que devem ser publicados e divulgados para que essas informações possam ser usadas e, possivelmente, impactem mais pessoas.

Como exemplo, em 2018 o PET Medicina teve o prazer de construir uma extensão em conjunto com o PET Comunidades Indígenas. Uma das integrantes do PET Indígena havia elaborado e realizado duas atividades na Aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro. Nessas realizações ela pôde, juntamente com o Observatório de Saúde Indígena e o posto de saúde local, iniciar um levantamento de demandas, bem como perceber particularidades dessa população e das estruturas físicas disponíveis. Foram levantados três temas principais entre os moradores da Aldeia: acesso à Universidade, doenças crônicas e saúde sexual e sexualidade. Após essa etapa os PETianos de ambos os grupos se dividiram em grupos de trabalho, reuniram-se, planejaram e realizaram diversos espaços multidisciplinares como rodas de conversa e capacitações em Saúde Indígena, além de, na medida do possível, manter contato com a Aldeia para organizar atividades presenciais. No início de 2019, PETianos de ambos os grupos PET puderam ir até a aldeia e realizar as oficinas e atividades planejadas junto da população durante quatro dias praticando educação em saúde sobre os três temas previamente pensados. Diversas reformulações da metodologia inicial foram necessárias de acordo com a demanda local. Após a finalização da atividade e nossa respectiva volta, escrevemos, submetemos e apresentamos em congressos trabalhos a respeito da realização dessa atividade para difundir os meios utilizados. 

 

Estudantes das Universidades Públicas, uni-vos!

 

Em última análise, um convite a realizar Extensão não é apenas um chamado à promover impacto social através da Universidade ou a realizar mudanças no meio em que se está inserido. Nem somente uma convocação à derrubada dos muros que a distanciam do povo. É tudo isso e muito mais. É “mais” porque não é um “convite”, mas também uma Lei. A indissociabilidade do tripé Universitário está no artigo 207 da Constituição Federal de 1988. Porém, mesmo se abandonássemos a justificativa legal para deixarmos de executar e buscar formas de realizar extensões competentes, nos restaria ainda analisar a moralidade de não o fazer:

“Querida Academia,

do alto dos seus títulos

daí de onde você vê

a universidade é pra quê?

pra caber quem?

dentro da sua sala

você se esconde

pra não ver lá fora

ou pra quem tá lá fora não te ver?

o conhecimento que você produz

é pro povo ou pro CNPq?

pra sociedade ou só pra enfeitar lattes?

se quem tá dentro

não vê os muros em volta

quem vê de fora

não enxerga nada além da muralha”

(Trecho do discurso de formatura de Ciências Políticas da UnB proferido pelo estudante Marcelo Zoby em fev/2016) 2

Como dito, a Universidade pública, por assim o ser deve servir ao povo. Portanto, se somos nós, discentes e docentes, que a compomos como instituição, nós devemos servir ao povo. Há tantas desigualdades, dificuldades de acesso ao conhecimento científico e à própria Universidade. O ensino superior público tem o poder de transformar essa realidade e devemos estar à serviço dessa transformação, jamais esquecendo o dever de nos livrarmos de individualismos e caprichos pessoais. Ultrapassar os muros da Universidade não basta, devemos destruí-los.

Texto escrito por Walter Cruz e Guilherme Augusto.

[1] - Encyclopædia Britannica. "Universities" . 11ª edição. 1911.

[2] - DENEM: Cordenação de Extensão Universitária. O que é Extensão Universitária? – A filha pobre do Tripé Universitário. Disponível em: https://www.denem.org.br/2016/09/08/o-que-e-extensao-universitaria-a-fil..., acesso em 25/11/2020.

[3] - Rocha, L. B. Manual de extensão universitária da UFBA. 1ª edição. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2014.